quarta-feira, outubro 22, 2008

O movimento das ondas embala

um concerto flutuante, fulminante!

Crista sonora. Suavidade vasta

anuncia, sem alarde, o cio do belo.


Risco das notas decepa o bordado

clássico. Singrando rotas fugidas,

dolentes, batuta de um tempo fugaz,

vulgar, sem o vagar. Vistas abertas.


Mirante. Minudência perscrutando,

silenciosa e vaga, vagas vergadas.

Não na mão. Virulência de um minuano.


Além, dureza de seda, a miragem

se abre, sabre de cristal perfurando

o grito mudo. Tema da covardia.


Burla

Verdugo de si mesmo em outro

o amor se mostra em outeiros

de prata, cintilando roteiros

feitos de rasteiras e trovas.


 

Algoz; agora não escolhe cena,

inventa tablado fatal, final

de um ato falho; conspurca a

pugna da vida com um gesto vil.


 

Patíbulo de outro em mim mesmo

o amor se vela em finas camadas

de pátina, mascarando posseiros

invadindo sem eira nem beira


 

a pobre propriedade de minha

rica idade: o Amor desvairado

em atitude nobre e guerreira.

quarta-feira, julho 09, 2008


O silêncio de meu corpo

É o grito de minha alma.


A Boca cala

O que os olhos dizem

Em um perfeito acorde,

Dissonância exalando

suavidades da pele, pútrida.


Chagas de um tempo

Pululando poucas pipocas.


sexta-feira, junho 20, 2008

A chama da fogueira

Serpenteando o ar

Lambe o fim

– Que se prenuncia –

Em lânguidas labaredas.

segunda-feira, abril 14, 2008


A pedra dura.

Rocha rachada

no solo, carcomido.


A pedra pura.

Richa antiga

no solo, do sax.


A pedra mole.

Rinha líquida

no solo, chão

debulhado no grão

dourado do sol, inclemente.

Tange uma guitarra,

range um carro, boi

na pipa linha limpa.


A pedra poluída.

Argamassa de detritos

soldados na sova,

na sopa dos desvalidos,

na sola dos vencedores.


A pedra política.

A dura titica

no solo, adubo

ancestral dos invasores,

sacramentos de excrementos

no dócil asno de botas.

Desde muito, remota fertilidade,

selo na testa das bestas,

soberba na lapela bela

do meu gostoso francês.


A pedra inculta.

A terna espera

do solo, de cello.

Fura a fina fila,

oculta pelo pó da festa,

a fácil faina da ira,

a gota suada na pira,

a espada moura na praia,

a ligeira lambada no lombo.

Tudo é delírio!

Lírio da pedra

na selva escura.

terça-feira, março 18, 2008

SUÍTE DO DESESPERO

I – PRELÚDIO

Bem, pretendo contar um pedaço da história de um cabra que conheci em um butiquim pé-sujo que costumava freqüentar. Nome incerto e com uma malemolência tupiniquim bastante temperada com a cultura universal. Deixemos logo de cara registrado que o referido era de uma erudição invejável. De Bach a Elomar, o sujeito não só conhecia tudo, como cantava com uma afinação de dar inveja a Fischer-Diskau, além disso, tocava um belo violão. Aqui se faz necessário abrir um pequeno comentário:

- Este violão foi a única coisa, fora a minha vil presença, que sobrou de minha inimiga. Ele deverá ser guardado como troféu de minha vitória.

Em princípio achei apenas uma peça de retórica barata e não dei muita atenção. Mas após nossa convivência íntima, mais de cinco anos, acabei por achar que entendi. Terminei por descobrir que o violão era de luthier e custava uma pequena fortuna. Não era o valor que importava. Para ele ali se escondia vinte anos de sua vida, a eterna inimiga. Segundo ele, foi o momento em que se deu a única trégua em sua luta com a inimiga.

Do que sua memória registrou, – primeira contradição: sabia de cor uma infinidade de músicas, textos, mapas, poemas, até artigos inteiros ele já me citou, enfim, uma memória prodigiosa – ficou uma janela aberta mostrado todo interior da casa.

- Sabe, qual é mesmo sua graça?

- Odaízio.

- Ah, sim! Odaízio na sala está todo meu resumo, a parte essencial de minha existência. E ela foi pintada com o pincel do fracasso desde o início. Bate nítido o dia, qual foi mesmo? Tinha sete anos? Seis? Cinco... em que se manifestou minha sina de sempre quebrar a obra, destruir o que construí, desfolhar a rosa cultivada com afinco e denodo durante tempos. Depois: o pavor. A sensação eterna de ter o malogro como companheiro. Graças ao meu temperamento irracional sempre consigo acabar com a mais dura armadura, aniquilo de um golpe toda sorte de salvação. Deliberadamente corro rumo ao fim, como se buscasse o bálsamo redentor de minha miséria: a morte. Pois não é exatamente a vida minha maior inimiga?

Conforme o grau de alcoolismo, este ponto de vista sofria algumas alterações interessantes. Uma delas, talvez a mais significativa, era o fato de ele sempre fazer uma confusão, buscando uma polissemia qualquer, entre vida, Aída e ávida. Convém esclarecer que a ex-mulher dele chamava Aída, sim, com acento no i. Deste triângulo vocabular, surgia uma curiosa dialética anárquica, digamos assim, pois a cada segundo as premissas, assim como a síntese, quando havia, tomavam contornos cada vez mais imprecisos e doloridos. Agora, isso não é nada diante dos longos discursos produzidos – essa arenga, deixemos claro mais uma vez, era de uma lucidez e erudição que dificilmente se acha por aí, mesmo nos melhores salões – por sua mente corroída em um coquetel de álcool, todo tipo de tabaco, noites insones, livros, música, solidão e loucura.

Do que consegui apurar, posso assegurar que o dito tinha uma boa posição social e um grande reconhecimento do mundo intelectual antes que eu o conhecesse. O que me espantou, pois, embora eu não fosse um genérico e sim um especialista, nunca ouvira falar nele. O que só compreendi depois que O conheci. Conseguiu, mesmo com todos os delírios, manter um padrão mínimo de vida após o que ele qualificou como golpe mortal em sua inimiga. Tal golpe, sempre segundo o Referido, lhe custou muito mais que sua dignidade. Comentários obscuros, como era de seu feitio. Contudo, o que se mostrava em trevas era cristalino. Só fui entender isto muito tempo depois. O preço de sua vitória foi sua própria ruína. Para se manter vivo era preciso morrer. Qual não foi meu susto ao descobrir oito livros publicados, vários artigos em publicações de todo mundo, composições, enfim, uma vasta produção intelectual, todas voltadas para a arte. Acabei, por uma dessas felizes coincidências da história, descobrindo que o dito Dito era um exímio fotografo amador. Mais tarde fui saber que se tratava de sua linguagem predileta.

Segundo seu filho, o que eu consegui, por enquanto, catalogar é uma parte ínfima de sua produção. O primogênito, aliás, igualzinho em tudo ao pai, me disse que tudo que ele produziu após a separação foi praticamente perdido. Acrescentou que foi a fase mais produtiva do velho. Escrevia e compunha alucinadamente. Sóbrio, bêbado, deprimido, feliz, não importava seu estado de ânimo, tudo era motivo para fazer um poema, uma música, um artigo, um ensaio, uma fotografia...

Por enquanto fiquemos com estes pormenores do Dito, chamemos assim. Sobre a minha pessoa, basta dizer que sou um velho professor universitário, viúvo, aposentado, sem filhos e com um belo tempo para a vadiagem, a especulação sem sentido e tudo mais que o ócio possa proporcionar.

A – Primeira seção: o buteco.

Era um pé-sujo sui generis. Comecemos pela diretoria, pois todo bar que se preze tem a sua diretoria, os clientes fixos e contumazes que trocam de música, invadem o congelador e choram suas mágoas para o proprietário. Havia de tudo: médico, jornalista, não pode faltar nosso homem da imprensa, auditor do fisco federal, auditor do estado, músico fracassado, funcionário público, diplomata, tradutor, cineasta, publicitário picareta, biólogo renomado, que foi o primeiro a me dar algumas informações sobre nosso herói, professor aposentado de literatura brasileira, no caso, este que vos escreve, advogado de cela de cadeia, até um major do exército fazia parte da diretoria, militante comunista radical, militante reacionário e, como não poderia deixar de ser, o bebum pentelho, ícone do bairro. Creio que esses são os mais representativos. Os outros, vamos nos referindo à eles ao longo da narrativa. Era um grupo de umas vinte a trinta pessoas que tornavam a vida do bar lucrativa para seus donos, um casal já em idade avançada.

Pois bem, foi neste ambiente que travei contato com o Dito pela primeira vez. Acabara de me mudar para esta casa e estava vasculhando a área para me inteirar onde poderia tomar meu whisky diário. Deparei-me com este casal e sentei para beber e ler. Ocupar minha folgança era meu encargo. Não demorou muito para que o Dito chegasse, sem cerimônia, cumprimentou um por um dos presentes e pegou uma cerveja no frigorífico. Sentou sozinho, suposição confirmada mais tarde, na mesa reservada aos diretores. Pegou um cigarro, procurou o isqueiro e não achou. Dirigiu-se a minha pessoa, que nesta altura só prestava atenção no recém chegado, e pediu no seu jeito misturando empolação com a mais chula expressão:

- Aí meu chegado, vossa excelência poderia, por obséquio, ceder-me por alguns instantes seu objeto faiscante, vulgo isqueiro?

Como eu não fumava não me foi possível atender ao pedido, mas o cara me intrigou. Fiquei prestando atenção e vendo todo seu gestual elegante. Parecia um Lord inglês. Era só mesura e delicadeza com as pessoas que foram chegando. Parecia ser muito querido de todos, o que se confirmou rapidamente. De início uma conversa trivial com seu Carlinhos, o butequeiro. Não tardou muito chegou o médico. Camarada grande, gordo e com uma barriga de doze meses. Grávido de um bode. Bonachão e despreocupado começa uma conversa com o Dito. Inicialmente contou uma piada, Dito outra. Os dois conheciam as duas.

- É doutor Francinaldo, tá difícil piada nova.

- Esse menino, isso não é nada, mais difícil tá a cachaça. Ô carestia danada. Acho que vou virar evangélico e dar o dízimo, sai mais barato.

- Façamos o seguinte: montamos nossa igreja e continuamos a beber.

- Taí! Idéia genial. Sou o tesoureiro.

- A gente pode vender terrenos no céu. Latifúndio com bela vista para Vênus, terreno vizinho de Deus, e, suprema glória, seu pedaço do paraíso garantido por toda eternidade. Quando chegar se o cara não gostar, devolvemos o dinheiro com juro e correção monetária.

- Faz o que você quiser, mas o tesoureiro sou eu.

- E o pastor?

- É... precisamos de um pastor.

- O Balthazar, tem nome de crente, cara de padre e ainda é politicamente correto, perfeito. A simbiose absoluta e pura.

- Taí! Idéia genial. Mas, eu sou o tesoureiro.

- Eu organizo a suruba.

Nisto o dono do estabelecimento chega junto de mim, percebendo minha falta de educação, e diz cochichando:

- Quando junta esses dois aí é uma bestagem sem fim.

Meu risinho de lado denunciava minha indiscrição. O que foi prontamente notado pelo Dito.

- O senhor não estaria interessado em participar de nosso empreendimento?

Minha vergonha foi escancarada e fiquei todo sem jeito, não sabendo o que responder. Dito, com sua perspicácia toda excessiva, não me perdoou:

- Ora, mais um que foge de sua sina. Renda-se aos desígnios de sua existência que os céus o perdoarão.

Não entendi absolutamente nada e fiquei mais aparvalhado. Ainda desconhecia a fina ironia misturada com a mais pura bobagem de nossa personagem. Este acontecimento foi a minha porta de entrada naquela balbúrdia insana, sedutora... Após esse constrangimento, evidentemente apenas para mim, seguiu-se uma conversa na qual eu prestava atenção e participava muito timidamente. Limitando-me a responder as perguntas que me eram feitas.

- O senhor é novo aqui na área? Nunca te vi! – perguntou-me o Dito, mais pelo não dito, pois era notório que ele conhecia muito bem tudo por aqui.

- Sim! Mudei-me há coisa de três semanas. Comprei o velho casarão.

- Desde criança ouço falar que aquele casarão é a morada da tristeza.

- Crendices – Disse o Dr. Francinaldo em um misto de desprezo e cientificismo.

- Ora, Dr. Francinaldo, causa-me espécie que vossa excelência não se fie nas longas lendas de nosso imaginário, de nossa louca fantasia. Não caia nas mãos da racionalidade. Então me explique: presenciei a passagem de várias famílias naquela casa, e todas com a tragédia colada em seus rostos. O mais antigo que consigo lembrar foi o velho Ludovico. Homem bom, atencioso, camarada e, sobretudo, muito deprimido. Também, depois de tudo que o velho Ludovico passou. Depois dele vieram os Cavalcantes, família dizimada pelo filho mais novo que se suicidou logo após, tudo lá, no belo e velho casarão. Fora todos os casos anteriores que minha vó – ou seria minha tia? Não! Acho que foi minha madrinha – me contava.

Confesso que a narrativa me assustou de início. Mas a sublinhar, só mais tarde percebi os sinais de demência se mostrando em sua louca memória. A confusão de nomes, parentescos, casas, família, enfim, toda aquela parte dos quartos estava inapelavelmente às escuras, parte íntima que se tornou impenetrável. Outra coisa que me chamou atenção foi o fato de Dito associar belo e velho à tragédia: “no belo e velho casarão”. Tudo isso multiplicou minha curiosidade pelo casarão. Explico. Comprei o casarão ao acaso. Em minhas caminhadas a esmo pela cidade, deparei-me com esta edificação de início do século XVIII e me encantei. Procurei obstinadamente o proprietário para a aquisição do imóvel. Algo me arrastava para ali. Ao fim de oito penosos meses encontrei o dono e fiz minha proposta. Prontamente aceita. Encontrava-se em um razoável estado de conservação, o que permitiu uma reforma rápida. Troquei encanamento, fiação, uma reforma no piso de tábua corrida, que supus não ser original, e mexi o mínimo possível. Não era minha intenção desfigurar a casa, ao contrário, pretendia mantê-la o mais próximo possível de sua origem. De início não atinei para o tamanho da casa. Só após mudar percebi a imensidão vazia que me rodeava. O casarão, como dissera o Dito, tinha realmente um ar lúgubre. E isso me fascinou ainda mais. Foi quando percebi que dali não sairia nunca mais.

Minha ligação com a poética do espaço sempre foi muito forte. A casa, para mim, se tornava uma extensão do ser, símbolo vivo de um imaginário poético. Ainda mais com uma história tão, vá lá, unívoca. Não sei por que esta casa me lembrava Thomas de Quincey envolto em sua casa aromatizada pelo ópio. A solidão do sonho e do pensamento.

(CONTINUA...SABE DEUS QUANDO)

segunda-feira, março 17, 2008

Foto: Wellington Diniz - Grande Hotel - Araxá (MG), 1993.


O vento assopra uma lembrança
perdida no meio de velhos mofos
e insiste em trazer luz.

O vento, coitado, não lembra
que o melhor ângulo é uma
visão torta, deformando os arcos.